Gabriela Levy[1]
Regina Weinfeld Reiss[2]
Foi, como sabemos, a célebre paciente de Breuer, Anna O, quem com grande perspicácia, usou pela primeira vez a expressão talking cure para designar o método experimental de dissolução de seus sintomas histéricos através de relatos realizados sob hipnose. Breuer e Freud (1893/2016), confrontados com assombro e entusiasmo a esse intrigante efeito terapêutico das palavras, descreveram, por sua vez, aquilo que experimentava sua paciente como um “apaziguamento pela fala” (p. 53) ao ser “um sintoma resolvido pela fala” (p. 62) e, portanto, as manifestações patológicas “eliminadas pela narração” (p. 60).
Entretanto, essa descoberta do poder terapêutico da palavra, fundadora da psicanálise e centro de gravidade de sua clínica, não é exclusiva à nossa prática. Em um célebre artigo sobre a “eficácia simbólica”, Lévi-Strauss (1949/2003) propõe um inédito e provocativo paralelo entre xamanismo e psicanálise, considerando que ambos buscam induzir transformações orgânicas e/ou psíquicas pela produção de uma narrativa construída e vivida intensamente em diálogo com um interlocutor “suposto saber”. Palavras em transferência que constroem e afetam os corpos.
Retomando e aprofundando esse antigo debate entre psicanálise e antropologia, sobre o poder da palavra e da “aliança terapêutica”, Mauricio García Peñafiel e Roberto Beneduce abrem este Dossiê, interrogando-se acerca dos efeitos corporais da metáfora em universos semânticos e simbólicos muito distantes. O primeiro autor aborda essa problemática por intermédio dos arcanos da poesia de Mallarmé e Rimbaud, enquanto o segundo nos propõe uma análise dos signos-imagem de cantos rituais terapêuticos dos Dogon do Mali.
Porém, por mais diversos que sejam seus universos, ambos enfatizam um mesmo ponto: a materialidade verbal das metáforas terapêuticas e os rastros de suas “fulgurantes conexões” na memória dos corpos.
Seguindo a inspiração da temática da literalidade da palavra, Federico Racca nos leva, por meio das meditações labirínticas do Minotauro de Borges, a uma discussão lírica sobre o rastro sonoro das palavras e seu poder nos corpos. Esse autor nos lembra da familiaridade de Freud com os versos da tragédia grega, tendo presente assim, para além de seu conteúdo, o ritmo, a cadência sonora desses textos, e evoca Lacan, que retorna a essa intuição da marca sônica em sua “linguisteria” e na preocupação com os efeitos poéticos barrocos do significante em sua leitura de Joyce.
De um outro vértice, Luiz Tatit descreve o processo de redução e expansão do sentido das palavras. Destaca as mudanças históricas e sociais que afetam a semântica e a presença do som que as transforma. É quase inevitável que associativamente se pense nos conceitos de lapso, condensação e deslocamento, tão caros à psicanálise, quando o autor diz: “No limite, podemos dizer que as palavras não são as palavras, mas, sim, o que elas desencadeiam para causar modificações no seu próprio sentido”.
Finalmente, Ilana Feldman interroga os efeitos subjetivos do intercâmbio teatralizado das palavras na construção das identidades femininas, pela análise do “ensaio-fílmico” Jogos de cena, do cineasta Jorge Coutinho. A autora descreve a trama de depoimentos tecida nesse filme, que desestabiliza as noções de documentário e ficção, ao entrelaçar relatos da vida de mulheres comuns, com encenações desses relatos por atrizes profissionais que penetram profundamente esse jogo narrativo ao evocar suas próprias vidas. O jogo intersubjetivo das palavras e de suas singularidades, fio condutor desses exercícios de autoencenação narrativa, oferece assim uma reflexão perspicaz sobre a ambiguidade fundadora de seu poder, relembrado pela bela citação de Clarice Lispector (1964/1998): “Eu tenho à medida que designo – e este é o esplendor de se ter uma linguagem. Mas tenho muito mais à medida que não consigo designar” (p. 176).
Referências
Breuer, J. & Freud, S. (2016). Estudos sobre a histeria. In L. Barreto (trad.), Sigmund Freud, obras completas (vol. 2). São Paulo: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1893-1895).
Lévi-Strauss, C. (2003). A eficácia simbólica. In Antropologia estrutural (pp. 215-236). Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro. (Trabalho original publicado em 1949).
Lispector, C. (1998). A paixão segundo GH. Rio de Janeiro: Rocco. (Trabalho original publicado em 1964).
[1] Asociación Psicoanalítica del Uruguay.
[2] Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo.